O portão
Sobre portas abertas e fechadas e quando é hora de seguir em frente
Era uma menina, de três ou quatro anos de idade, talvez. Ela nunca havia visto o pai. Naquele dia, sua mãe lhe disse: “vou levar você para conhecer seu pai”. Foram andando, pois moravam relativamente próximas a ele. Chegaram à casa. Ele não estava, havia saído; e a menina e sua mãe ficaram ali, esperando. Do lado de fora de casa, pois elas não eram bem vindas pelos demais familiares do pai. Confusões de adulto que ela não entendia, mas percebia que aquelas crianças do outro lado do portão, filhas do mesmo homem, a olhavam de um jeito não muito amigável. Os adultos também não.
Passaram-se algumas horas, ela não sabe quantas; só lembra dessa como uma de suas memórias mais antigas. O homem não apareceu. A menina e sua mãe voltaram para casa, e a vida seguiu. Vez ou outra ela pensava como teria sido se ele aparecesse, que rosto teria aquele homem, se ela se parecia com ele.
Quando ela já era adulta foi que aquele portão se abriu, e o homem apareceu. Abriram-se o portão, os sorrisos, até os braços, mas o coração, esse permaneceu fechado, pois o homem estava muito ocupado consigo mesmo.
A menina, agora uma mulher, seguia na esperança de uma mudança. Mas dia a dia, mês a mês, ano a ano, o homem demonstrava que não estava disposto; que aquela porta do coração não havia chave que abrisse.
A mulher gosta de escrever, para esvaziar um pouco a cabeça de tantos pensamentos. E organizá-los, a fim de entender o melhor caminho a seguir.
Recentemente, ela ouviu de uma pessoa querida e importante: “a esperança é a última que morre, mas é a primeira que mata.” E seguiu com essa frase martelando em sua cabeça. Qual o momento em que se faz necessário reconhecer que uma pessoa ou situação não vai mudar? O que fazer com aquela esperança teimosa e insana lá no fundo da cabeça, que diz “mas quem sabe dessa vez? Será que não mudou?” E se dessa vez ela disser algo diferente, fizer algo diferente? Tentava, mas tudo seguia absolutamente igual; e a mulher percebeu quantos portões ela ficou esperando abrir na vida. Eram as amigas que só ela admirava e buscava, mas que não se mostravam disponíveis; o relacionamento onde só ela se esforçava; os amores impossíveis com a pessoa perfeita, porém emocionalmente não disponível. Ela havia esquecido que é preciso que o outro também se movimente. E que as vezes o outro não quer, não pode, não consegue.
Quando é a hora de largar esse tipo de esperança e seguir em frente? De aceitar a realidade e admitir que sim, haverá lacunas impossíveis de serem preenchidas, que há faltas que pode ser que sejam eternas, que haverá amores que, por mais perfeitos que sejam na imaginação, jamais serão vividos? Que é preciso virar páginas para escrever novas histórias, em vez de insistir na mesma, que se arrasta sem desenvolvimento?

Às vezes é preciso atravessar grandes distâncias pra olhar nos olhos do outro e entender isso. Outras, é só sentar ao lado da pessoa e de repente, a partir de um gesto, perceber que existe uma barreira invisível e intransponível. E, com aquela esperança vã soterrada de uma vez, decidir o que será colocado no lugar dela.
Existe no tarô uma carta extremamente temida pela maioria das pessoas: o Arcano 13, conhecido como a Morte. Quando essa carta aparece num jogo, muita gente até acha que se trata de morte literal, ou de algum acontecimento terrível. Mas na verdade a carta da Morte fala de transformações necessárias. A morte pode ser dura, mas sem ela a vida não se renova. Então tem coisas que é necessário deixar morrer, para que outras possam nascer; e para que aquela pessoa continue a viver. Esse é o grande aprendizado trazido pelo arcano 13.



Há esperanças teimosas que essa mulher gosta e quer seguir carregando, como a de construir um mundo melhor. Para as mulheres, para as crianças. Para todas as pessoas, quem sabe. Essa é uma esperança que a move, como a utopia, mesmo que cada vez que se dê um passo, como diz Galeano, ela se afaste um pouco mais.
Mas as esperanças falsas precisam ser abandonadas. Pois elas não mobilizam para a frente, para a construção, para a transformação; elas paralisam, puxam para baixo, impedem que a vida nova chegue.
É preciso aceitar que há portões que vão permanecer fechados; há os que nunca deveriam ter sido abertos; e há novas portas, só esperando que a pessoa desista daquelas antigas.
E talvez a porta mais importante de abrir seja a que dá para dentro de si mesma, pois é essa que ajuda a distinguir todas as outras.

Indicações deste texto:
Past Lives é um filme de 2023 dirigido por Celine Song.
Forest of Enchantment Tarot já tem versão em português como o "Tarô da Floresta Encantada". O Tarot mitológico explora a mitologia grega. e o Green Witch também já tem versão em português como o "Tarô da Bruxa Verde".
Mulheres que correm com os lobos, capítulos "Barba Azul”e "Patinho Feio”podem ser úteis para pensar sobre portas a serem abertas, sobre deixar ir e encontrar a “nossa turma".
D-day, Amygdala e Snooze, músicas de Agust D, passaram por aqui de alguma forma.

Que texto 🔥🔥🔥🔥
Caroool! Wow!