Encontros e despedidas
e aquilo que nunca morre
Ontem eu sonhei com um grande amigo. Um irmão mais velho, de alma, muito querido. O nome dele é Marco Antonio Krug, que eu chamava apenas de Krug. Vai fazer cinco anos que ele partiu desse mundo, após um curto, porém vertiginoso processo de adoecimento. Eu cuidei dele em seus últimos dias até a partida.
No meu sonho, ele estava fazendo uma das coisas que mais amava: cozinhar. Parecia estar responsável por um curso, e macerava ervas em cima de uma mesa que estava cheia de vasinhos de plantas, as mais variadas. De repente, dizia para mim que ia pular alguns conteúdos porque o curso tinha começado atrasado (a cara dele, ficar bravo com atraso) e que ia comprar cerveja de PANCs- Plantas Alimentícias não convencionais (quando acordei eu descobri que sim, essa cerveja existe) para todo mundo do curso.



A ultima vez que havia sonhado com ele foi no dia 29 de julho de 2020. Naquela ocasião, sonhei que estava indo ao hospital visitá-lo, e que apenas o via pela janela transparente do quarto, sem poder entrar. Ele me olhava com olhos úmidos, sorria e me soprava um beijo. Então, a enfermeira vinha e me dizia que era hora de eu ir embora. As 10:15 da manhã, recebi a ligação do hospital onde ele estava internado na UTI, pedindo que eu, que era responsável por ele na ocasião, comparecesse com urgência. Eu já sabia o que aquilo queria dizer: aquele sonho tinha sido a nossa despedida.
Não foi a primeira vez que me deparei com a morte, mas foi a primeira em que a senti com toda a sua força, pois aquela partida não era esperada, não era para agora, pensava eu: ele só tinha 56 anos. Num dia, me mandou mensagem dizendo que queria escolher um sapato comigo quando fosse para minha casa, e uma jaqueta também; dois dias depois, quando fui buscá-lo, ele não me reconhecia mais. Daí em diante foi percorrer hospitais no auge da pandemia do COVID-19, dormir em cadeira, leito desocupado; nada disso importava, desde que ele melhorasse. A melhora veio, mas foi breve, e ele partiu. A cama que estava arrumada em minha casa esperando por ele ficou vazia, e eu levei um mês para conseguir começar a desfazê-la. Lembro que minha filha, pequenina, perguntava: “mãe, o tio Krug morreu mesmo?” Tenho até hoje a sensação de que a dor do luto não foi plenamente vivida, pois eu precisei ser prática: dar a noticia para os familiares que estavam no Rio Grande do Sul e conseguir uma autorização por escrito para que eu fizesse os trâmites legais, cuidar da liberação do corpo do hospital, tirar certidão de óbito, fazer velório e enterro.





Mas é interessante perceber que, mesmo depois de quase cinco anos sem existir mais fisicamente, Krug segue vivo em mim, e eu vejo que sempre esteve, todos os dias. Lembro de frases que ele falava com seu sotaque gaúcho carregadíssimo e que eu incorporei na minha vida, sua sinceridade por vezes chocante, seu deboche fino, seu jeito mandão, mas amoroso, seu carinho com os detalhes de casa: tudo tinha um enfeite, uma florzinha, um desenho. Veio cozinhar no primeiro aniversário de minha filha, cozinhou e contou histórias nos quatro anos dela, e participou com alegria dos cinco, o último que pôde ver. Seu amor pelas plantas, pelos livros, pela arte, pela comida, a admiração por Pernambuco, para onde sempre vinha fugindo do frio gaúcho, são coisas que jamais esquecerei. Por vezes, é como se ouvisse ele falando no meu ouvido, me dizendo pra não esquecer de comprar pratos e talheres suficientes pra festinha de Adélia, que festa não é só decoração- o aquariano falando pra pisciana se orientar- ou em situações em que sei exatamente como ele reagiria e o que diria. E nessas horas eu penso na pergunta de Adélia: “o tio morreu mesmo?”
Infelizmente, não podemos mais fofocar, cozinhar juntos, debochar, falar da politica ou admirar os homens que achávamos bonitos; eu me pergunto o que ele acharia de tudo que aconteceu nesses últimos anos, sei que estaria feliz de ver Bolsonaro condenado, sei que teria orgulho de Adélia, de mim, do quanto cresci nos últimos anos, quando ele já não estava aqui para ver.
Mas uma parte dele não “morreu mesmo”. Porque segue viva em mim, segue viva nas pessoas que o conheceram e a quem a amizade dele uniu. Ele me deu a Karina Vogel, sua amiga e a Ana Clara, filha dela, de quem ele era padrinho; depois de sua partida, nós nos conhecemos pessoalmente, nos identificamos e seguimos alimentando um amor por ele e entre nós, mesmo à distância.




Depois do sonho de ontem, eu revisitei memórias queridas. De biscoitos de gengibre feitos no Natal, de conversas e risos, de broncas e reclamações, de afeto, de plantas, de flores, de fogueiras, de rezas antes do jantar, de passeios pelo Rio Grande do Sul, terra que eu já amava por causa do Erico Verissimo, mas que ele me apresentou fisicamente. Fui buscar fotos. Essa perda do Krug me fez pensar na importância dos registros fotográficos, pois eles têm o poder de nos transportar imediatamente para aquele momento, aquela lembrança (sou bem mais cuidadosa com o registro de momentos desde essa época). Escolhi algumas delas e imprimi, para tê-las comigo sempre que eu quiser; para honrar meu querido amigo no meu altar “de los muertos”; para que ele não seja esquecido, pois você que me lê, que nunca o conheceu, agora sabe um pouco dele através de mim.




Querido Krug, o mundo tá mais doido do que quando você estava aqui, mas a gente segue vivendo com nossa esperança teimosa. Eu mudei, tanta coisa aconteceu, Adélia tá enorme, não caberia mais no teu colo, lembra que a primeira vez que ela andou foi contigo? Fui comprar plantas ontem, trouxe uma flor de cera pra casa, tu amava. Sentimos tua falta, mas honramos tua memória. Estou aqui contando tua história para quem nunca te viu, nem ouviu tua voz, nem comeu tua comida, mas que vai saber que tu era(é) amado. E se um dia a gente se encontrar novamente, como eu acho que vamos, prepara o mate, porque o papo vai ser longo.

Que altar lindo que foi esse teu texto ❤️